sexta-feira, 13 de março de 2009

14ª,15ª E 16ª HISTÓRIA ...

No dia 1/10/80, fui colocada na Escola Secundária de Vila Nova de Gaia.


Esta foi uma escola que a nível de trabalho em equipa, de sucesso escolar e até de convívio inter-docentes, não me deixou qualquer marca.
Recordo-me, especialmente nos horários diurnos, de um espaço frio, muito coercivo, onde tudo e todos eram indistintamente punidos. Foi de tal modo pouco marcante que me é completamente impossível recordar um nome de qualquer um dos colegas, nem tão pouco de ter assistido a trabalhos conscientes e visívelmente realizados. Era tudo maquinal e sobretudo impessoal.
Pelo contrário, recordo-me bem das minhas turmas do curso nocturno.
Uma delas de trabalhadores/estudantes, com poucas bases e sobretudo sem perspectivas de vida.
Não eram insubordinados nem faltosos, mas muito pouco empenhados.
A outra turma muito heterogénea, com alunos desde empregadas domésticas, a funcionários menores da construção civil, lixeiros e até 2 prostitutas.
Apesar de não evidenciarem um grau de cultura suficiente, não faltavam e estavam ávidos de novos conhecimentos. Preocupavam-se muito mais por conhecer o dia a dia, a forma de vencerem, como superar situações que se lhes deparava, do que propriamente aprender os conteúdos curriculares.
Queriam, isso sim, conseguir entender as notícias de um jornal, interpretar os dados de um determinada artigo, saber mais sobre saúde, resolver problemas matemáticos simples.
Eu levava as aulas sempre preparadas como para qualquer outra turma, mas raro era o dia em que a aula não terminava a falar-se deste ou daquele assunto social, de saúde, de civismo …
Quando me apercebi que nenhum deles (eram apenas 12) tinha projectos de futuro, aconselhei-me com alguém a quem sempre recorri em casos de dúvida e optei por ir introduzindo a matéria, mas encaixada no quotidiano deles, nas suas angústias e necessidades.
Por estranho que pareça, tive um trabalho muito maior, porque nunca lhes respondia ao acaso. Se sabia conscientemente falava, se não procurava esclarecer-me, documentar-me e posteriormente discutir os assuntos.
Sei que as aulas terminavam às 22h30min e nunca chegava a casa antes da meia noite, porque era solicitada para novas discussões.

14ª HISTÓRIA
Nesta segunda turma existia um aluno que era servente da construção civil.
Tinha talvez 17 ou 18 anos.
Vinha sempre numa motoreta e trazia um capacete vermelho.
As mesas na sala eram aos pares.
Ele sentava-se sempre na fila da frente e colocava o capacete sobre a mesa ao seu lado.
Era raro o dia em que não adormecesse por uns momentos.
Comecei por acordá-lo, mas quando verifiquei que ele tinha mesmo necessidade de passar um pouco “pelas brasas” fazia de conta que não via nada. Passados os tais 10 ou 15 minutos, acordava, dava um safanão no capacete e dizia: “Anda lá meu sorna … Julgas que te trago à escola para dormires? “.
Todos se riam, mas a aula continuava sem mais confusão.


15ª HISTÓRIA
Nessa mesma turma estavam dois namorados.
Um dia o rapaz começou a faltar e ela dizia que ele estava com uma grande fraqueza.
Perguntei-lhe por diversas vezes se já tinha consultado o médico, mas ela respondia que sim, mas que ele era muito teimoso e apenas estava a tomar um medicamento feito pela mãe, à base de ovos, açúcar, vinho e mel.
O que é certo é que ele não melhorava!
A dada altura marquei um teste.
No dia aprazado quando lá cheguei vieram pedir-me para adiar porque a Ana tinha faltado, pois o João morrera.
Eu fiquei em choque, mas os alunos estavam inconsoláveis.
Afinal ele apenas tinha uma “Leucemia Galopante”.

16ª HISTÓRIA
Este episódio surge na sequência do anterior.
Como não dei teste, aproveitei para chamar-lhes à atenção dos cuidados que era necessário ter com a saúde, com os excessos que se cometiam e com a vida desregrada que se levava muitas vezes na juventude.
Os jovens, dizia eu, pensam que são os donos da verdade e da vida e esquecem-se que muitas vezes a sua fragilidade é muito grande ….
Todos se manifestaram de uma forma ou de outra.
Todos contaram um ou outro caso, mas a dada altura um rapaz loiro, alto, muito bonito, que se mantinha nas aulas sempre atento e muito calado, levanta-se, completamente fora dele, começa a chorar e pede-me que o ajude.
Não sabia o que iria ouvir, por isso disponibilizei-me de imediato para o fazer, prometendo ficar com ele no final da aula.
Não, não Srª Drª, dia ele em soluços. Eu quero falar agora. Eu quero que todos saibam quem eu sou, do que preciso e quanto preciso de todos..
Claro que auscultei os colegas da sua disponibilidade em ouvi-lo e fi-los interiorizar que a partir desse momento ficaríamos todos por dentro de um segredo,de um problema, com o qual teríamos de conviver e se possível actuar. Perguntei ainda se algum preferia sair a assumir este compromisso.
Ninguém se mexeu!
Dei então a palavra ao Luís.
Entre soluços, revelou que era toxicodependente, que não era feliz com isso, que se estava a sentir-se cair num fosso sem retorno e que não tinha mais ninguém a quem recorrer.
Perguntei-lhe se não tinha pais.
Respondeu que sim, mas que o pai era demasiado severo e determinado e que nunca seria capaz de aceitar uma situação daquelas. O senhor era um técnico muito conceituado da RTP daí que funcionasse muito em função do pensamento dos outros e com vergonha. (Não podemos esquecer-nos que isto se passou há 30 anos).
A mãe, dizia ele, era uma “doce costureira” que em casa apenas olhava pelos filhos e pelo marido e ainda era incompreendida e maltratada por ele. “Não, não quero e não posso castigá-la mais”. Só aqui eu espero a ajuda, senão mato-me.

Se o ambiente já era pesado pela morte do outro aluno a partir de então fez-se um silêncio aterrador, cortado apenas pelos soluços dele que entretanto se sentara cobrindo a cara com as mãos.

Foram uns segundos pesados ...

Depois um, seguido de outro e mais outro … todos se aproximaram dele, deram-lhe um abraço e prometeram firmemente ajudá-lo.
Mas como ????

CONTINUA BREVEMENTE

8 comentários:

Sónia Costa disse...

Até me arrepiei.
Fico à espera de saber como o ajudaram...

Sônia Brandão disse...

Olá,
Vim conhecer o seu blog e agradecer a sua visita ao meu.
Gostei muito das histórias de sua vida como educadora. Estou curiosa para saber o final da história desse rapaz. Espero que seja um final feliz.
Um beijo.

Tite disse...

Então Licas... isso faz-se?

Deixar aqui uma pessoa cheia de bortoeja até à publicação da continuação de mais uma história de vida.

Abraços

Licas disse...

Olá Amigas ...

Saber esperar é uma grande virtude.
Preparem-se, pois volto em breve.
Bom fim de semana
Beijinhos
Licas

Anónimo disse...

Também fiquei curiosa pelo final... :-) Amiga, tem mais um desafio no meu blog. Beijinho (temos de combinar o nosso cafezinhO)

ematejoca disse...

Licas, imagino-te uma mulher com "um coração de ouro e umas mãos bem fajezas." Quando li, que morreram 3 professoras, nesta horrrível tragédia em Winnenden, ao tentarem proteger os alunos, lembrei-me de ti. Penso, que fazias o mesmo. Eu nunca! Só fazia uma coisa dessas pelos meus filhos.

Faz o favor de ler o meu último comentário no "Artista Maldito", porque o meu primeiro foi mal interpretado.

Bom fim-de-semana
Teresa

ARTISTA MALDITO disse...

Boa Tarde Isabel

Muitas experiências diversificadas e também de natureza humana trágicas. Por trás da vida das pessoas há, por vezes, muito sofrimento do qual ninguém se apercebe.


Espero que tenha um óptimo fim de semana e beijinhos
Isabel

Teté disse...

Essa da "leucemia galopante" é mesmo de arrepiar, uma amiga da minha família morreu disso, assim em cerca de um mês...

É curioso como as pessoas se tornam mais solidárias, quando estão mais tristes com a perda de alguém! Muitas vezes pequenas questiúnculas deixam de fazer sentido, quando é a própria vida que está em causa!

Beijocas, Licas!